Um Maranhão de tantas histórias

Maranhão é coisa única. Os de lá têm cara de índio, falam e dançam à portuguesa, mas juram que são filhos de franceses.

Tudo começou quando, em 1612, a França dominou um pequeno trecho do norte da colônia portuguesa na América, e lá criaram uma cidade: São Luís, que recebeu nome de rei e santo francês. E foi pra vigiar o ataque de invasores piratas que se construíram tantos mirantes pela costa (seria esse também o motivo do nome da filiada da Globo no Estado?). O domínio francês durou pouco tempo, cerca de três anos, mas foi o suficiente pra até hoje os maranhenses levarem com orgulho essa origem. Ou talvez eles não tenham sido “tão expulsos” assim, pois ainda há muita gente com sobrenome francês por lá.

Mas o mais importante foi a colonização portuguesa. Esse norte, junto com o Pará, Piauí e parte do Amazonas, era tão diferente e distante do resto da América portuguesa, que até 1772 Portugal tinha duas colônias na América: Brasil e Grão-Pará e Maranhão.

Maranhão (4)Em São Luís há azulejos portugueses como em nenhuma outra cidade do Brasil, que reservaram essa riqueza ao interior de igrejas de muitas posses. Mas em São Luís, que deve ter sido bem rica sem ostentar ouro em suas igrejas como se fez em Minas Gerais e Bahia, ostenta-se o azulejo na frente das casas.

Além dos azulejos, é portuguesa também a dança que moças e rapazes fazem nos festejos, vestidos como se estivessem na Corte, mas em estilo tropical do século XX, pois as saias já são curtas, mas ainda assim opulentas. E foi em Alcântara (a cidade de onde saem os foguetes brasileiros) que cheguei à conclusão de que no Maranhão, a festa do Divino Espírito Santo deve ser a mais profana do Brasil. Ali, pouco se fala do “santo”. Fala-se de Imperador, Imperatriz e mordomos régios, há muita comida e luxo, relembrando as antigas festas reais portuguesas. Maranhense gosta de fuzarca, bagunça. Por isso há tanta festa por lá.

upaon-acuAlém de festa, há muitas lendas difíceis de serem comprovadas ou contestadas. A da serpente, por exemplo. Já tinha ouvido falar que em volta da ilha de São Luís (que oficialmente se chama Ilha de Upaon-açu, e que em língua indígena significa “Ilha Grande”), dorme no rio Anil uma serpente que está crescendo. Quando sua calda encontrar sua cabeça, ela acordará e destruirá a cidade. Tudo se inverterá. O que está em baixo ficará em cima. E o contrário. Por isso, há quem diga que a serpente na verdade está protegendo a cidade. Mas descobri que ter serpente não é exclusividade de São Luís: soube de uma em Alcântara e outra em Barreirinhas. Um rapaz me disse que há outras espalhadas pelo Estado. “Está cheio de serpentes no Maranhão”.

Maranhão (250)A contribuição dos índios está na cara das pessoas. É só chegar e ver. Tem também a mandioca, a brava mesmo, da qual se tira o veneno pra fazer farinha e tapioca, tão gostosa, e ainda a tiquira, aguardente pros fortes, que até espanta pela cor que algumas trazem. Outra contribuição muito importante foi fazer mistura com as lendas sebastianistas portuguesas e criar as toadas de boi. Nas festas juninas (e durante o resto do ano), se festeja o boi no Maranhão. E são tantas as maneiras de se cantar e dançar, que o boi tem vários “sotaques”: da baixada, matraca, zabumba, orquestra, costa de mão. Cada sotaque tem um instrumento especial, que dá corpo ao canto do “batalhão”. E a festa do boi traz também vaqueiros, índios e espíritos, como o cazumbá, um “cadeirudo” que assusta Pai Francisco quando vai roubar o boi pra pegar sua língua. Cazumbá não é homem, nem mulher, nem gente, nem animal. É espírito da floresta que tem cara de monstro, e às vezes carrega na cabeça uma casa, igreja ou loja de CD.

Há outros espíritos no Maranhão. Lá estão algumas das mais importantes casas de Candomblé jeje do Brasil. Talvez tenha sido tão difundido naquelas terras por ter tido negros que resistiram à escravidão em tantos quilombos. Às vezes, a resistência parece ser silenciosa ou silenciada. Mas hoje há os esperançosos por mudanças, como se tivesse acabado agora a era dos senhores e coronéis.

Maranhão (237)O nome do Estado, por sua vez, dizem ter vindo do português mesmo. Alguns falam que seria pelo emaranhado de rios, que sobem e descem diariamente com uma vazante surpreendente (sem falar do tanto de lagoas, que secam e “brotam” todo ano, e que abrigam peixes trazidos misteriosamente por aves durante a cheia). Outros dizem que o nome veio de “Maranhos”, do português arcaico, e significa “grande mentira”. Foi Padre Antônio Vieira que em 1654 expôs sua perplexidade sobre o modo como as notícias corriam por lá: “Estive considerando comigo que verdades vos diria e segundo as notícias que vou tendo desta nossa terra, resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será esta? Não gastemos tempo. A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade”*.

Sandra Oliveira

*Sermão da quinta dominga da quaresma, do Padre Antônio Vieira.

Viagem a Cuba: um pouco de contexto

É difícil escolher por onde começar a falar sobre Cuba. Mas adianto: foi uma viagem muito especial.

Além de ser um desejo antigo conhecer a Ilha, estamos passando por um momento de transformações políticas e econômicas em Cuba, como as negociações para o fim do embargo econômico.

Para visitar Cuba é preciso mais do que ser um turista comum. É preciso ter os olhos atentos, ouvidos abertos e que a alma não seja pequena. Se souber um pouco da história, ajuda muito.

Trânsito em Havana
Trânsito em Havana

A coisa mais lugar comum que se ouve de visitantes desatentos é que Cuba parou no tempo. Só porque o centro de Havana é dominado por prédios construídos antes de 1959, ano da Revolução. Quiséramos nós, historiadores, que todos os lugares “parassem no tempo” e conservassem muitos de seus prédios históricos. E que houvesse, como há pelo centro velho de Havana, a presença da “Oficina del Historiador”. O que pouca gente sabe é que Vedado, o maior bairro da Cidade, cresceu muito depois da Revolução, e conta com prédios altos, modernos, além da harmonia do urbanismo com qualidade de vida em suas ruas arborizadas.

Mas uma cidade – e um país! – não é feita apenas de prédios, mas principalmente por pessoas. Antes da Revolução, na época da ditadura de Fulgencio Batista, da população de 5,5 milhões, aproximadamente 40% estava desempregada. 30 mil mulheres estavam fichadas como prostitutas (8% da população). Imagine que, em 1959, nascer mulher numa família pobre já tinha praticamente destino. Felizmente Cuba não parou no tempo e hoje há emprego e vida digna para todos. Homens e mulheres.

Um mini shoppping em Havana
Um mini shoppping em Havana

O que não há (muito) é o consumo como conhecemos cá deste lado da economia, onde nós e outros poucos somos privilegiados a desfrutá-lo. Outra diferença (crescente) do Brasil é que nos últimos anos, as classes mais baixas têm tido acesso a crédito, podendo comprar carro, casa, TV 32 polegadas e até um perfume importado dividido em 12 vezes sem juros. Enquanto isso, seus filhos têm aulas em salas lotadas (chegam a 50 alunos por sala em São Paulo) e professores são desrespeitados em greves não reconhecidas.

Em Cuba há escola e educação de qualidade. A ONU disse, e saiu até no site da Globo.

Há médicos também. E medicação. Alimentação subsidiada a todos os cubanos. E não se engane: não verá apenas carros “velhos” por lá. Verá também lindos carros antigos de dar inveja a qualquer admirador. E carros novos franceses e chineses. E outros tantos eletrodomésticos novos chineses, como os da sua casa.

Infelizmente, em Havana ainda não há ciclovia. Também não há uma política de descarte de lixo doméstico, com sacolinhas verdes e cinzas. Aliás, tem gente que sai da padaria sem embrulhar o pão. Mas todos saem com pão, garantido pelo governo.

Los Nardos
Los Nardos

Nem todo cubano almoça em restaurante. Mas em Los Nardos à noite você vai ver famílias com sua melhor roupa para comemorar algum acontecimento especial, ao som de piano, flauta e violino, preço justo e lugar privilegiado em relação aos turistas.

Há também pequenos empreendedores (sim, cubanos), como aqueles que alugam quartos em suas casas para turistas. Havia geladeira e ar-condicionado no quarto onde fiquei, além de empregada na casa, com o patrão chateado porque ele não consegue comprar um perfume importado.  É uma pena que haja gente assim em todo lugar.

Mas há gente generosa. Aliás, é o que eles mais dizem sobre si mesmos, que cubanos são muito generosos. São também simpáticos e adoram conversar. Orgulham-se de ter educação e sistema de saúde garantidos, e de que quase não há violência nas ruas – há dias em que sequer são registrados roubos na província.

Ateliê particular de escultura
Ateliê particular de escultura

O que também se fala é sobre a expectativa do fim do embargo. Imagine que estão a 100 km dos Estados Unidos, e dali não podem importar nada. O comércio é realizado apenas com as nações amigas, e por ser um país pequeno e com pouca indústria, quase tudo deve ser importado de países distantes. Imagine o custo. Agora, imagine que com o fim embargo, poderá ser economizado muito com a facilidade da importação. Bom para os cubanos, que terão acesso a mais benefícios ou mais qualidade de produtos. Bom para os Estados Unidos, que terão um novo mercado consumidor ao lado de casa.

Mas como disse, cubanos são generosos. Fora aqueles poucos que estão interessados no perfume importado, a maioria espera que continuem tendo acesso à educação, saúde, segurança e alimentação a todos. Esperam que a essência do governo não mude.

E assim desejamos nós também 🙂

Sandra Oliveira

O TUEGAS

ERA UMA VEZ UM TUEGAS QUE MUMIFICAVA CAVALOS.
UM DIA ELE SE FECHOU NUM QUARTINHO.
O TUEGAS DISSE QUE IA GUERREAR PARA VOLTAR PARA A ISLÂNDIA.
MAS ELE SE ESQUECEU QUE NAQUELE DIA TINHA A FEIRA.
A FEIRA ERA UMA FEIRA.
NA FEIRA VENDIA LUSTRES.
NA FEIRA VENDIA PAPEL PARA ENXUGAR LUSTRES.
NA FEIRA VENDIA COLA PARA PAPEL PARA ENXUGAR LUSTRES.
NA FEIRA VENDIA LIMPADOR DE COLA PARA PAPEL PARA ENXUGAR LUSTRES.
NA FEIRA VENDIA LIXADOR DE BOLSINHA DE MARMOTAS TAMBÉM.
NA FEIRA VENDIA FUROS PARA CORTINAS.
NA FEIRA VENDIA SEMENTES QUEIMADAS PARA PLANTAÇÃO DE ALHO.
NA FEIRA VENDIA ESPANADORES PARA HELICOPTEROS.
MAS O TUEGAS, VENDIA CAVALOS MUMIFICADOS.
MAS O TUEGAS TINHA ESQUECIDO QUE TINHA FEIRA.
AÍ O TUEGAS NÃO FOI NA FEIRA.
ENTÃO O TUEGAS FOI PRA ISLÂNDIA.
MAS ELE ESQUECEU DE AVISAR AO BATATÃO DELE.
O BATATÃO TINHA MEDO DE QUE O TUEGAS FOSSE EMBORA SEM AVISAR.
ENTÃO, O TUEGAS VOLTOU E AVISOU O BATATÃO.
E VOLTOU PRA ISLÂNDIA DEPOIS.
MAS LÁ NA ISLÂNDIA NÃO TINHA FEIRA.
ENTÃO O TUEGAS NÃO PODIA VENDER SEUS CAVALOS MUMIFICADOS.
ENTÃO ELE SE INSCREVEU NUM CURSO PARA CORTAR PAPEL.
O TUEGAS NÃO SABIA CORTAR PAPEL.
ELE SEMPRE PEDIA PRO BATATÃO CORTAR O PAPEL.
MAS ELE APRENDEU A CORTAR PAPEL.
AÍ O TUEGAS VOLTOU PRO PAÍS DELE.
E VIROU UM CORTADOR DE PAPEL.
FIM

Dora Stroeter

Sobre nossa vizinha: Dora Stroeter, 11 anos, é paulistana. É apaixonada por gatos. Gosta de cantar, desenhar e escrever, mas não curte muito mostrar o que faz para os outros…

O dia em que quis ver cidades

Escolhi passar o ano novo no Monte Roraima, pois 2014 deveria ser um ano totalmente diferente do anterior. Muitas coisas seriam iniciadas e sentia que precisava de uma boa dose de consciência para ter sucesso nos novos planos e não-planos que surgiam, e não cair em fantasias ou expectativas irreais. Queria ter respostas e queria também a beleza que encontrei na Chapada Diamantina, um lugar mágico.

Havia lido vários relatos sobre o encantamento do Roraima, e de como as pessoas se sentiam transformadas ou encontravam respostas às suas questões interiores. Mas o que descobri é que o Monte Roraima é um lugar para superar seus limites, e cada um sabe qual é o seu.

Seriam nove dias de trekking. Para chegar à base da montanha é preciso dois dias de caminhada, e mais um para chegar ao topo. A caminhada pela savana venezuelana foi um pouco monótona, porque quase não avistava paisagens diferentes, e quando chegamos próximo da base, uma chuva terrível caiu, e nem conseguíamos ver a montanha, coberta pelas nuvens. Mas na manhã seguinte o céu abriu e pudemos subir pela encosta do tepui com mais tranquilidade. E lá em cima um mundo de pedras e pedras e pedras, criado há dois bilhões de anos e intocado até 1884.

Claro que houve momentos fantásticos. Atravessar o Passo das Lágrimas foi o mais maravilhoso. Não há fotos que expressem o que vi ali. Passar por debaixo da fina cachoeira na subida de cascalhos escorregadios, enquanto olhava pra cima e via o céu, a montanha, os raios do sol descendo com as gotas. Era como se Makunaima estivesse autorizando minha entrada no topo. Simplesmente lindo, algo deslumbrante que me fazia ter vontade de ficar ali parada. Via do outro lado os companheiros ainda iniciando a travessia e a savana se estendendo até onde os olhos podem alcançar. Ainda teve outros momentos especiais: o pôr do sol visto do paredão do lado venezuelano, com aquele céu cheio de azuis, vermelhos, laranjas e o branco das nuvens. Já no paredão do lado brasileiro, vi a floresta amazônica que parecia infinita abraçando as pedras da montanha.

Crédito: David Tsai
Na beirada do paredão do lado brasileiro. Crédito: David Tsai

Mas havia as partes difíceis. Sabia que elas existiriam, mas nem imaginava a que ponto. Não me lembro de um dia que acordei com a sensação de ter dormido tranquilamente. Embora a agência brasileira seja bem mais organizada do que as venezuelanas, sofri com a comida, e não só por ser vegetariana – os que comem carne também sofreram, inclusive com a saúde. O banheiro, nem falo. A parte do banho foi até boa, porque eu, que nunca gostei de água fria, tomei meus poucos banhos com muita satisfação nos laguinhos que havia por lá.

Mas ai começou a chuva no topo. Não chuva exatamente, mas era como se caminhássemos em meio às nuvens com vento e umidade, onde simplesmente não podíamos ver nada. Andar seis quilômetros para se chegar ao Lago Gladys e não ver absolutamente nada foi muito frustrante. (Mas um índio carregador de mochilas me disse que o lago está lá e foi o que mais lhe encantou.)

As caminhadas paravam às duas ou três da tarde por causa do mau tempo, e às seis já era noite. Nos dias de chuva, obviamente sem estrelas. Dormíamos cedo, e cada vez mais a caverna onde acampávamos enchia com as pessoas que queriam passar o ano novo no topo.

Lembro do meu desespero no sétimo dia (segundo sem banho), chovendo, meias secas acabando, minha barraca montada na lama (agradeço a gentileza dos meninos que trocaram ^^ ), o acampamento cheio, a comida ruim e a promessa de ver (não ver) mais uma vez as coisas no meio da neblina/chuva no dia seguinte. Enquanto isso eu sonhava com um lindo ano novo nas Illas Margaritas, no Caribe Venezuelano.

Metade do grupo se dispôs a descer o Monte com um dia de antecedência. Depois de negociações, no dia seguinte o grupo se dividiu e partimos. Estávamos em sete mais guias e carregadores. O Passo das Lágrimas já não estava mais tão lindo, mas fui firme com o claro objetivo de chegar rapidamente à base. Cada um do grupo que chegava ali era recebido com a musiquinha do Ayrton Senna que cantávamos, e o sorriso da satisfação era claro. Além da felicidade de ver o céu sequinho. Mais quilômetros foram necessários para se chegar ao acampamento final. Antes disso, paramos no rio Tek e ali tomei um dos melhores banhos de minha vida. Todos felizes, rindo, bem humorados, até compartilhei meu sabonete com alegria rs. Aquela água corrente, quase nem tão fria, o sol.

Próximo ao rio Tek montamos o acampamento em um pequeno povoado e, vejam só – havia até cerveja por lá! Bebemos um vinho que ganhamos de presente e comemos nossa última e saborosa refeição. O céu estava estrelado, a noite (quase) quente e havia um grupo razoável de pessoas por ali. No meio de outros turistas, argentinos, americanos, neozelandeses, aprendemos canções da tribo de Balbina, uma guia indígena. Dançamos em roda, felizes. Os homens apresentaram um grito maori, e as mulheres tentamos cantar e dançar Macarena. Era ridículo e ao mesmo tempo fantástico, por ser extasiante e inusitado. Como estávamos cansados, comemoramos o ano novo às 21:30, que seriam 24:00 em São Paulo. Alguém puxou “adeus ano velho” e todos dançaram como se fosse uma canção indígena.

O dia amanheceu claro e quente, e depois de comer uma deliciosa tapioca feita pelo guia Humberto, seguimos à comunidade de Paraitepuy. Olhávamos para trás e víamos o Monte Roraima coberto em nuvens.

Embora não tenha passado o ano novo no lugar mágico que havia escolhido, foi incrivelmente sensacional. E mesmo com todos os perrengues, tive muitos aprendizados. Ou pelo menos aprendi a valorizar muitas coisas simples. Não imaginava que as transformações se davam assim em um nível tão comezinho. Mas não era o que eu queria, mais realidade em minha vida?

E assim começou 2014, simplesmente fantástico.

 Sandra Oliveira

A galera no Ano Novo
A galera no Ano Novo

Origem e Destino: MARCO ZERO

autoEm 2012, quando ensaiávamos o espetáculo Origem Destino com a Companhia Auto-Retrato, estive trabalhando nas arestas dos poemas que publiquei, ao lado de Caetano Gotardo e Marco Dutra, no livro Matéria. Não pude não misturar um trabalho a outro e, dos ensaios no Marco Zero, em frente à Catedral da Sé, me saiu este poema, em que tento traduzir uma impressão sonora (e um afeto) daquele espaço que habitei tão vivamente por mais de um ano, ao lado dos meus parceiros de trabalho.
Convidada a escrever desta experiência, escolhi este poema. Acho que ele mantém aberto uma espécie de vão entre mim e minha vontade de falar deste espetáculo e, por isso, não poderia ser mais preciso. Nossa última expedição rumo à Santo Amaro neste ano parte dia 17.12.2013, terça-feira, ao meio-dia.

MARCO ZERO

Imagem

Aqui, precisamente, no centro da praça onde passa o aprendiz de engraxate, sob uma sirene que cai sobre os carros, os ônibus, a voz que passa a duas quadras, Cinco, sete. Ali, ao lado do salto que corre para o farol que se abre, caem três palitos de fósforo no chão. Não, Ninguém os ouviu cair, e eles não soaram em vão.

Carla Kinzo

Sobre nossa vizinha: É atriz da Companhia Auto-Retrato. Formada em Cinema pela ECA e em Letras, pela FFLCH, é mestranda em Estudos Comparados na FFLCH/USP. Seu livro de poemas, “Matéria”, escrito em parceria com Caetano Gotardo e Marco Dutra, foi publicado pela 7Letras com apoio do ProAC de Primeira Publicação de Livro da Secretaria do Estado de Cultura de São Paulo.

SOBRE O ESPETÁCULO

Origem Destino (nono espetáculo da Companhia Auto-Retrato) propõe ao público um deslocamento pela cidade de São Paulo, partindo da Praça da Sé (Origem) com destino ao bairro de Santo Amaro (Destino), acompanhado por oito atores da Companhia e mais quatro músicos do quarteto instrumental À Deriva, num trajeto que acompanha o fluxo dos principais rios da cidade de São Paulo, como o Anhangabaú, o Saracura (ambos soterrados) e o Pinheiros (um dos mais poluídos do país).

A pesquisa da Companhia Auto-Retrato – que completa uma década de existência –, está conectada à cidade de São Paulo –  sua arquitetura, suas histórias e suas geografias (física e humana) e, tanto a dramaturgia quanto a oImagemcupação artística de suas ações são pensadas por meio da relação com cada lugar, especificamente, a partir de seus habitantes, de suas histórias, de seu desenvolvimento urbano e de sua relação com o rio (entendido aqui como ponto fundamental da estruturação geográfica e social da cidade).

Construído a partir do material recolhido pela companhia no programa performático “Ouço Histórias” – realizado originalmente na Praça da Sé e no Largo Treze de Maio, em Santo Amaro, no decorrer de 2012 –  Origem Destino é a reelaboração criativa da escuta de narrativas e de depoimentos colhidos na rua neste período que deram origem a personagens ficcionais (baseados em relatos reais).

O espetáculo é dividido em duas partes; a primeira realizada a pé, partindo da Praça da Sé com destino ao Terminal Bandeira e a segunda; realizada de ônibus, seguindo pelo corredor da Avenida Nove de Julho e da Marginal do Rio Pinheiros, até o Terminal Santo Amaro, com duração total de  aproximadamente 2 horas e 30 minutos.

A direção é de Andrea Tedesco e Mauricio Veloso. A dramaturgia é de Marcos Gomes.

O espetáculo é gratuito e, quem quiser nos seguir até Santo Amaro, deve apenas trazer seu bilhete único. Nossa última expedição rumo à Santo Amaro neste ano parte dia 17.12.2013, terça-feira, ao meio-dia.

Rua Berta

 Meio surreal a maneira que fui tomar um cafezin num dos sobrados modernistas da Rua Berta…

Era um 25 de abril, era 2004, eram 30 anos da Revolução dos Cravos, era uma macarronada numa casa bacana na Vila Mariana, era um casal de velhinhos super-simpáticos que me ofereceram uma carona até o metrô.

O causo é que antes de me levarem ao metrô, esse casal de velhinhos me convidou para um café na casa deles. E era justamente um dos sobrados da Rua Berta. Me levaram até lá dentro, me mostraram todos os espaços. Vi a decoração, os objetos antigos, as fotos… Achei um tremendo privilégio eu poder entrar numa daquelas casas e cultivei durante todos esses anos o desejo de um dia poder morar numa delas.

Tudo na Rua Berta é diálogo: fachadas, árvores, calçada, museu Lasar Segall.

A questão que me movimenta agora é que num enorme terreno atrás desse conjunto impar, se fará um dos milhares de empreendimentos-imobiliários-especulativos-latifundiários-dos-inferno da cidade de São Paulo. Não vou entrar em detalhes do projeto, é mais um daqueles espigões-super-modernos-que-você-nunca-quis-ter-como-vizinho-mas-que-sai-super-bem-na-foto-da-propaganda.

Para além dos danos estruturais que cada casa poderá ter diante do tamanho da construção vizinha, o que mais me incomoda é a falta de diálogo deste novo projeto com o bairro onde ele será inserido. O que me irrita em São Paulo é que há a arquitetura e o urbanismo do umbigo: o que importa é que o prédio tenha uma aparência ultramoderna, tenha um milhão de vagas de estacionamento e aparente ser grandioso. Que se lasque o redor. Todos estarão em seus escritório, pedirão comida pronta pelo telefone e não precisarão olhar para o bairro em que estão.

Isto é sempre trágico. Sempre. Insano. Agora, dói muito, é que um lugar com uma historicidade tão marcante como a Rua Berta – a rua modernista! – seja o novo palco do jogo do capital em SP.

Raquel Foresti

Ver ou enxergar a cidade

De diversas formas, a cidade se manifesta aos olhos e ouvidos de quem nela vive. Prestar atenção nesse discurso pode resultar numa vida mais rica de histórias e significados

Jaguaré, que também é Jaguarex para quem conhece as entranhas do bairro (Foto: Sabrina Duran)

“Todo mundo precisa de um lugar para pensar”, diz a placa de metal fixada no banco de um passeio público em Londres. Numa rua de São Francisco, Califórnia, um colorido mural apresenta cenas cotidianas de casais gays, cenas que se reproduzem aos montes, ao vivo, naquela mesma rua onde está o mural, um conhecido reduto de militância pelos direitos dos homossexuais. No Jaguaré, zona oeste da periferia de São Paulo, a palavra “Jaguarex” escrita em um muro indica que naquele bairro, tanto quanto no Grajaú, “duas laje é triplex”.

A cidade se manifesta de diversas formas, e quem tem sentidos para ver e ouvir, leva uma vida muito mais rica no espaço urbano.

Mensagem em banco público de Londres, Inglaterra. (Foto: Sabrina Duran)
Mensagem em banco público de Londres, Inglaterra. (Foto: Sabrina Duran)

Dia desses conheci uma moça chamada Sandra Oliveira, uma das responsáveis pelo blog Cidadeando, que compila narrativas de pessoas comuns sobre o lugar onde vivem e circulam. São crônicas, ora amenas e felizes, ora tristes, densas – essa ambiguidade das cidades. Todas as narrativas, no entanto, têm em comum a observação do narrador, que detém o olhar em algo que sempre vê, mas daquela vez enxerga. ENXERGA. E por isso o dia comezinho ganha sentido, ou mais sentido.

Enxergar a cidade faz toda a diferença para quem não quer apenas passar por ela, mas sobretudo estar nela. Enxergar a cidade nos faz sentir parte do tecido urbano, e sentir-se parte de uma realidade é condição essencial para transformá-la.

Em reduto de militância gay em São Francisco, Califórnia, um mural fala da vida cotidiana daquele lugar (Foto: Sabrina Duran)
Em reduto de militância gay em São Francisco, Califórnia, um mural fala da vida cotidiana daquele lugar (Foto: Sabrina Duran)

Sabrina Duran

(texto originalmente publicado no blog Na Bike)

Sobre nossa vizinha: Sabrina é jornalista e mora no centro da cidade, lugar que, apesar dos prédios altos, tem a familiaridade e aconchego de uma vila.

O Vendedor de Guarda-Chuvas

Nunca tinha visto a violência com meus próprios olhos, apenas tinha ouvido falar dela. Eu a combatia mesmo sem ter tido uma prova empírica de sua existência. Hoje não farei poesia de minhas palavras, pois não consigo conceber maneiras de tornar belo algo que é horrível na medida em que também é corriqueiramente banal. Tomei um ônibus em direção à estação Tatuapé aqui em São Paulo, hoje é um dia que chove fino e frio, além da temperatura gelada que faz lá fora. É normal, aqui na cidade, que muitas pessoas passem horas sob lugares fechados completamente esquecidas do tempo; milhões de paulistas saem sem seus guarda-chuvas, trabalham e descobrem em plena hora do almoço que o céu está a desabar sobre suas cabeças. Vivemos na cidade das mil oportunidades, habitada por milhões de cidadãos oportunistas. Achamos mil e uma maneiras de ganhar o tal “suado dinheirinho”: enquanto alguns o fazem jogando na bolsa de valores ou especulando no mercado imobiliário, alguns vendem trufa, pão-de-mel, balinha, chiclete, balão, carregador de celular e, finalmente, guarda-chuvas. Nunca precisei diretamente dos royalties da empresas multimilionárias, mas os deuses sabem do quanto já precisei de um guarda-chuvinha descartável para atravessar a passarela, ou para abrigar uma pessoa querida numa tarde torrencial. Talvez seja por isso que eu não dê a mínima para qualquer engravatado com a bunda confortavelmente sentada no banco de couro de um helicóptero, e prefira voltar minha atenção aos pobres vendedores de guarda-chuvas no Tatuapé, Belém ou qualquer outra estação. Creio que isto acabará por fazer recair o adjetivo “tendencioso” neste relato, e a isso respondo: Pro inferno com hipocrisia! Já passou da hora de pararmos de acreditar nessa falsa imparcialidade. Todos já nos posicionamos ideologicamente no mero ato de existir como seres humanos. Ficar em cima do muro é anuir covardemente com o status quo das coisas do mundo. E hoje eu odiei o status quo como nunca o odiei em toda minha vida, pois hoje vi a violência em sua forma pura e simples. Peço desculpas pela necessária digressão e volto ao meu ponto de partida: a estação de metrô e o vendedor de guarda-chuva. Quando saí do ônibus, caminhei em direção às escadas rolantes para pegar o metrô, e lá estava o vendedor, na calçada, com duas caixas de guarda-chuvas, ofertando-as aos passantes. Parei entre a escada e o início da fila de embarque de um ônibus qualquer para responder uma mensagem de celular, não percebi que estava atrapalhando a passagem, perdido que sou, até que um senhor de azul me pediu passagem, apressado. O pedido, o esbarrão e a topada foram tão “educados” que eu, perplexo, já ia erguer a voz para lhe dizer um palavrão, mas quando levantei os olhos vi que o senhor e mais outro colega seu vestido de azul cercavam o vendedor. Eles eram seguranças, e puxavam seus cacetetes investindo contra ele, eles surraram suas pernas e cabeça, xingaram-no, roubaram suas caixas de guarda-chuvas, terminaram seu ritual insano carregando as caixas escada rolante acima. Eu ouvi um dos seguranças dizendo enquanto subia: “vagabundo, filho da puta”. Pergunto-me se um homem que estava apenas tentando prover o sustento para sua família pode ser chamado assim. Pergunto indignado também quem foi que deu o direito àqueles homens de surrar o vendedor como se ele fosse um animal preparado para o abate. Igualdade? Liberdade? Mentiras e fetiches de uma sociedade que glorifica empresas e empresários assassinos de índios, políticos que vomitam jargões de uma direita estúpida e aparelhos paramilitares que são acusadores e executores de pobres. Essa é a sociedade que se faz viva e presente na ideologia do golpe, quer ele seja de Estado, ou contra a dignidade das pessoas, ou contra as minorias, ou na sua folha de pagamento, ou até mesmo na cabeça de um pobre vendedor de guarda-chuva. O pior, no entanto, não foi o ato insano dos seguranças, essa violência física absurda. Quando os guardas foram embora (rápidos, bem-treinados e eficientes, não consegui gravar o acontecido), dirigi-me ao vendedor ajudá-lo a se levantar e perguntei: “O senhor está bem?”, ele se levantou, sem jeito, e disse, cortando-me o coração, pois aquela sim era a pior das violências: “Estou bem sim, moço, é normal isso” Sim, assustadoramente, “É normal isso”

Rodrigo Bravo

Nosso vizinho já publicou aqui neste blog os textos Hipopótamos, Jardim Alzira Mesquita e Piano.

A insustentável serenidade na cidade

Estava nas movimentadas ruas de São Paulo. Vinha andando e em sua frente havia uma mãe com uma criança no colo. Observou a criança que olhava pra trás e com quem uma outra mulher brincava. Ficou observando a relação entre essa mulher e a criança e era incrível, no meio da cidade, haver uma imagem que transmitia tanto conforto. Criancinha no colo, brincadeira, criança sorrindo com os olhos, carinho de mãe, amor de tia… Mas acordou. Estava na rua, congestionada de pedestres, próxima a um hospital, muita gente, pessoas aflitas, muita pressa. Lembrou-se que estava com pressa. De repente se perguntou como pudera perder tanto tempo em tal devaneio. E riu-se de si ao perceber que poderia ter deixado os ritmos dos seus passos serem definidos pelos passos de uma mulher com criança no colo. Mulher com criança no colo anda muito devagar. Hoje é dia de semana. Lembrou-se da pressa e ultrapassou aquela mãe. Só não se lembrou pressa de quê.

Laura dos Lauréis

Sobre nossa vizinha: É psicóloga, doutora em Psicologia Clínica pela USP, professora universitária e ama o corre-corre de Sampa.