Acorda, amor (dubstep remix)*

Eu, irritado, avesso, arisco, pouco fiz antes de ir dormir. Ela, meio entediada, ressentia-se de minha indisponibilidade, lançando em acusação dejetos da outra metade dela, a metade carente.

Pouco falamos, na verdade. Meu dia, o ruim que foi meu dia, notícias esparsas sobre as licenciosidades das amigas dela, do absurdo dos acasos da rua, ah! cada coisa que acontece na Paulista, eu ando desatento, o trabalho não está me fazendo bem, o que há de errado, não me enche, você não presta, amanhã, amanhã, então ótimo. O clima ríspido não me despertou muito, o sono persistia.

Vinho, quer vinho?, duas taças de vinho, ela também tomou uma. Cabeça mais leve, intranquila igual.

Dormir Dormir? Vamos.

Cara fechada, Inês. Fechada? Fechada.

Boa noite.

Sono, nada. Sono é bicho do mato, se sente presença estranha vai-se fugido, fica o homem lá, todo preparado com os apetrechos da caça – a cueca samba-canção, as luzes apagadas, os apetrechos eletrônicos todos flácidos pela casa, o escuro, o silêncio. E o sono? Nada. A casa em festival para ele e ele, exigente, indiferente, foi-se. Avante à janela da sala, pé ante pé, a Inês que me mata se eu ponho a chatice na conta do sono e apareço com uma insônia logo depois, que tanto passa por essa Paulista?

Avenida que não dorme, na cidade que não dorme. Devem ser cinco da manhã, se eu mesmo cheguei às duas agora há pouco – vamos ver quanto vale a insônia dessa cidade. Procuro a vida, venha, vida!, pole dancing, lap dancing, dubstep, qualquer coisa para colorir a vida de um gentio enfastiado.

Nada. Essa cidade não vale nada, essa avenida? Nada. O vento carrega um jornal pela calçada, passa um cara com roupa social, provavelmente indo trabalhar – cedo madruga, esse aí. A avenida das luzes, da vida, a esperança de um inesperado, um acontecimento… nada. A cidade dorme, indiferente.

Procuro a vida, sinais da vida; uma sirene ao longe, um casal se amassando em algum canto escuro, um hipopótamo, monomotores soltando nuvens de fumaça, qualquer coisa, e nada. De volta à cama, rolar na cama, acordar a Inês, resmungar com a Inês? Acorda, amor, eu tive um pesadelo, gente lá fora, conversa comigo, Inês, eu sinto a gente distante, a secretária do Pedro anda dando mole; acorda, amor!

Escuto alguma coisa, um som grave ressoando, distante; é a Inês? A Inês ronca?

Eu ronco?

Lá, no sentido da Consolação. É de lá que vem. E vem, cresce, ganha cores e contorno. São os tambores da guerra. São os orcs. São os Beatles. É uma banda cover, fazendo uma performance de fanfarra com músicas dos Beatles.

É isso! Eles vêm seguindo pela avenida, na contramão – pratos, bumbo, caixa, naipe. Obladi, oblada, life goes on, la, la, la, a Inês! A Inês vai acordar!

Bom, e eu? Coisas da vida, que culpa tenho se a banda do sargento Pimenta resolve fanfarrear às cinco? Life goes on.

Seguindo a fanfarra vêm dançarinas, os uniformes vermelho e branco, dando estrelas e cambalhotas. Meu Deus, que ridículo!

Assim que penso “que ridículo” me dou conta que estou sacudindo levemente os quadris ao som do Obladi, oblada. É isso, o corpo sabe o que a cabeça esquece, o corpo lembra, lembra – life goes on. Saio, meio correndo, desço pelas escadas de incêndio, o prédio está estranhamente claro para o dia e horário; previsão é de chuva para todo o Estado, quando foi que pus o sobretudo?, life goes on.

Chego ao térreo. O porteiro, encostado ao batente da porta aberta, acompanha a fanfarra, assovia para as dançarinas. Vai, delícia! Vergonha…

E aí, Zé, que história é essa? É a vida, seu Mário, a vida segue. Aproveite a vida, esse trabalho está acabando com o senhor – com todo o respeito, senhor. Olha lá, a vida segue – beleza de vida, não?

Na primeira linha das dançarinas, a secretária do Pedro; como eu não vi de lá de cima? É a única sem uniforme, vestindo as roupas de secretária, a blusinha social branca, a calça social preta, os sapatinhos feios que essa gente usa.

Todas elas estão usando essa roupa?

Como?

Todas!

Passa por mim um monociclo, um homem, roupas de mímico, equilibrando pinos de boliche. Life goes on!

Isso não faz sentido, nenhum sentido. A cidade nunca dorme; se ela nunca dorme, como ela sonha?

Sonha, cidade. Sonha, paulista. Não tem mais pesadelo, nada. Tem gente até de madrugada fazendo confusão, que aflição. Os homens, são os homens, é a vida dos homens, alegria, todo dia, repara não.

Inês! Vem, inês, é a vida, a alegria, é a vida do burguês, alegria é ser freguês, é fazer compra pro mês e pro ano, no cartão. Vem, alegria, alegria, repara não.

Obladi, oblada, life goes on!

Eu estou, estaria dançando, agora chove, a banda está no auge, passam zepelins com alto falantes, eu giro, pendurado no poste, singing in the rain. Life goes on. Passam os hipopótamos, suas saias cor-de-rosa, os saguis pulando em meio a eles, dançando, arremessando cocô na multidão a cantar nas calçadas – alegria, alegria!

Sonha, Inês! Vem, Inês, a alegria é a euforia, é o dia da alegria, somos todos consumidores, uma só magia, venha pra farra, pra folia, vem curtir, isso é Bahia, é o samba do gringo, é o dia do cão!

A secretária me puxa pela mão. Em meio às bailarinas, seguindo a fanfarra – pelo menos isso continua! – dançamos frevo, obladi, oblada.

Alegria, alegria!

Inês?

Inês!

Que foi, amor?

Foi um pesadelo…

Está clareando o dia…

Inês?

Que foi, amor?

Eu… desculpa. Eu sonhei que tinha gente, lá fora… é… fazendo confusão.

Ah, valeu, Chico!

Quê? Ah, é. Ha, ha. Hipopótamos, Beatles, mímicos…

Só mais um dia na Paulista, é isso?

É, acho que é por aí. É que a gente ficou fazendo brainstorming de um comercial novo da empresa e acho que eu estimulei demais a imaginação.

Esse trabalho ainda te mata! Mas acho que a vida às vezes é mais estranha que a ficção.

Agora conversamos por referências musicais, é isso?

Desculpa, é o sonho, quer dizer, é o sono. Desculpa. Life goes on.

Isso aí, Inês! Life goes on. La, la, la.

Wilson Franco

sobre nosso vizinho: Will (ou Wilson Franco, como preferir) é paulistano, psicólogo, psicanalista, prolixo, pedestre sempre que possível. Tomado por profunda ambivalência em relação a São Paulo e o cinza que ela convoca e emana. Coordena com Paulo Beer um grupo de estudos sobre a interface do Acompanhamento Terapêutico com a cidade, a clínica e a política.

* texto originalmente publicado no blog do autor.

Deixe um comentário